sábado, 19 de novembro de 2016

A katályma



José, o carpinteiro, teria que ir recensear-se em Belém de onde era oriundo. Junto a ele, montada em um burro, viajava Maria em avançado estado de gravidez, enfrentando uma viagem fatigante de mais de 150 km desde Nazaré. Seu esposo se sentiu mais tranquilo quando, por fim, entraram na cidade de sua família, pois trazia consigo a esperança de encontrar logo um albergue, tendo em conta a condição em que se achava sua mulher. Porém, andaram de casa em casa, e a todas achou cheia de gente. Acontece que, por causa do censo, muitos belemitas regressaram desde os diversos pontos do país para renovar sua inscrição nos cadastros romanos. Em vão buscou um lugar onde acomodar Maria para que pudesse dar à luz a seu filho; não o encontrou. De repente viu uma pousada. Ali se conseguiria seguramente alojamento. Porém, a decepção foi enorme quando o proprietário lhe informou que não tinha nenhum canto disponível. Por fim, José com Maria, que se movia pesadamente e que já sentia as dores de parto, se dirigiu a uma gruta que servia de estábulo para os animais e terminaram aconchegando-se dentro. Na solidão daquela gruta, Maria deu à luz o seu primogênito, e o pôs logo em uma manjedoura, isto é, no recipiente onde se coloca comida para os animais, que por sua forma alargada lhe serviu de berço. Porque os homens a quem viria salvar lhe fecharam as portas, o Filho de Deus terminou por nascer em um estábulo.

O Evangelho relata isso?
Porém, esta narração assim contada, e que temos ouvido e meditado inúmeras vezes, especialmente ao chegar o Natal, levanta dois grandes problemas. O primeiro é que não concorda exatamente com o Evangelho de São Lucas, do qual foi tomada. Com efeito, este em nenhuma parte diz que Maria havia chegado a Belém quase a ponto de dar a luz. O texto só afirma: “E aconteceu que, estando eles ali se completaram os dias em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). Tampouco conta o Evangelho que o casal haja andado de casa em casa e de pousada em pousada buscando alojamento. Esta é uma simples dedução pelo fato inexplicado de que Maria tenha dado à luz em uma gruta destinada para refúgio dos animais, e porque se afirma que “não havia para eles lugar na hospedaria” (Lc 2.7).

A imprudência de José
O segundo inconveniente é a grande quantidade de perguntas que levanta: a) Se José vinha para uma breve prática administrativa, e tendo em conta que naquela época não era obrigatória à mulher apresentar-se no despacho do censo - porque bastava o chefe de família -, para que levaria Maria até Belém? b) Como foi tão imprudente de esperar até a última hora e viajar quando ela estava quase a ponto de dar à luz? c) Como homem justo e prevenido que era não, foi capaz de prover um lugar mais decente para o parto de sua esposa, sabendo que o que viria ao mundo era nada menos que o Filho de Deus? d) Se ele era de Belém, e voltava à sua própria cidade, como é que não tinha uma casa onde se alojar? e) Considerando que para os povos do oriente a hospitalidade era um dever sagrado, no qual estava em jogo a própria honra, não parece estranho que ninguém abriria as portas a José, nem sequer um parente, mesmo vendo o estado de Maria?

E tudo por uma palavra
Assim colocadas as coisas, estas perguntas indicam de imediato que estamos em um beco sem saída. Porém, todo o problema reside em que temos feito uma leitura equivocada do Evangelho à qual temos acrescentado, muito de imaginação sobre o que o texto conta. A culpa está em uma palavra que foi mal traduzida e criou a confusão, e assim estimulou a fantasia de gerações de leitores. Trata-se do vocábulo grego kata,luma (Katályma), que a maioria das Bíblias traduz por hospedaria, pousada, albergue. Ao traduzir desse modo esta palavra, a frase do Evangelho diz que “não havia para eles lugar na hospedaria”. Porém no grego bíblico esta palavra tem também - e primariamente - outro significado, que é o de aposento, quarto, peça de uma casa, ou seja, uma parte especial da casa, mais bem separada, ou reservada.

A katályma
O que era realmente a katályma, na qual não havia lugar para eles? Para entender bem o sentido do Evangelho de Lucas devemos nos situar no ambiente da Palestina onde as casas não constavam de vários quartos como podem ter as nossas atualmente. Com a precariedade da edificação de então, as residências tinham tão só uma peça central onde havia de tudo: armários, ferramentas, assentos, despensas, cozinha. E onde, chegada a noite, se estendiam as esteiras para o repouso noturno, cada um em seu lugar preferido.
Esta peça central era, pois, o pequeno mundo doméstico ao redor do qual girava toda a vida do lar e o movimento das pessoas, mais ou menos como ainda são os lares de muitos de nossos ambientes rurais. Porém, além da sala principal, as casa tinham também algum ambiente menor, reservado, às vezes empregado como depósito ou para eventuais hóspedes, com separadores anexados para maior privacidade.

O quarto das parturientes
Este quartinho anexado servia, sobretudo, para quando na casa havia alguma parturiente. Porque em Israel, quando uma mulher dava à luz um filho ficava impura durante 40 ou 80 dias, segundo fosse menino ou menina, por causa da perda de sangue que havia sofrido. A Lei judaica prescrevia que os objetos que ela tocava, a cama onde repousava - inclusive qualquer lugar onde houvesse sentado - ficavam impuros. E se alguém tocasse a parturiente, ou entrasse em contato com algum utensílio tocado por ela, também ficava impuro (Lv 15.19-24). E para os judeus, uma pessoa impura ficava isolada socialmente, diminuída (desacreditada) diante de Deus e dos demais; não podia ir ao Templo, nem relacionar-se com ninguém até que terminassem os ritos de purificação que eram complicados e levavam seu tempo. Daí as precauções que se tomavam em cada parto, e o por quê de se fazer residir na katályma, ou seja, em um quarto separado da casa, e não no ambiente comum, a que acabava de ser mãe.

Assim tudo é mais claro
Agora suponhamos por um momento que o evangelista Lucas quando escreveu que não havia lugar na katályma, não estava pensando em uma hospedaria, como traduzem normalmente as Bíblias, mas sim em uma peça particular de uma casa, que é a primeira possibilidade que proporciona esta palavra grega. Então, de imediato, se clareia todas as perguntas, o texto evangélico se torna mais coerente, e a figura de José volta a adquirir confiança como pai responsável e esposo prudente. Comecemos, pois, a ler agora todo o relato do Evangelho à luz desta nova explicação, sem interpretações arbitrárias nem acréscimos espúrios e fantasiosos.

Com uma mulher em estado interessante
Havendo se inteirado de que o imperador de Roma havia ordenado um censo, José, que momentaneamente residia na Galiléia, decidiu voltar a Belém, visto que era dali (Lc 2.4). O mais natural teria sido deixar na Galiléia a sua jovem esposa já que não era necessário que comparecesse diante das autoridades do censo. Entretanto, mesmo apesar da condição em que se encontrava, decidiu levá-la consigo, pois pensa em radicar-se definitivamente em Belém, o que é lógico, tendo-se em conta que ele era desta cidade e que aqui tinha seus parentes, sua casa e suas posses. Tendo ele domicílio em Belém, então é justo pensar que traria Maria para que se estabelecesse em sua própria casa e ali vivessem. Para isso se puseram em marcha com tempo, com a prudência dos justos, e para evitar as dificuldades do último momento. Dadas as circunstâncias, a viajem deve ter demorado uns dez dias pelo caminho longo e acidentado de então, porém, vários meses antes do parto.

A intimidade de uma gruta
Neste ponto afirma o Evangelho que “enquanto eles estavam ali, se completaram os dias em que ela havia de dar à luz” (Lc 2.6). No entanto, era a época do censo e muitos belemitas que tinham vindo de todas as partes enchiam a cidade instalados nas hospedarias e em todas as casas particulares. Também Maria e José receberam e alojaram em sua casa muitos parentes e amigos, de modo que ficou cheia.
Acontece, então, que chega a hora do parto e ambos percebem que não havia lugar onde Maria poderia dar à luz digna e discretamente, sem incomodar e sem ser incomodada, e sobretudo sem transformar em impuros todos os que estavam na casa. Ou seja, não havia lugar nem mesmo na peça separada da casa, na katályma. Por isso, sem ofender a nenhum de seus parentes, se retiraram à gruta-estábulo que todas as casas de Belém tinham (e ainda têm), onde acolhiam os animais. E ali, em uma gruta de sua própria casa, adaptada como refúgio e arrumada por José da melhor forma possível, pouco depois Maria deu à luz a um menino. As demais mulheres a ajudaram a envolvê-lo em panos. E como berço tomaram uma pequena manjedoura (caixão onde se punha o alimento para os animais domésticos), o limparam bem, lhe puseram palha nova e cobriram com panos. É isto o que se deduz se lemos o texto que, corretamente traduzido, agora diz: “E deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o em panos e o deitou numa manjedoura, porque não tinham lugar na sala” (Lc 2.7).

Para eles, não havia lugar
Por isso, na continuação o evangelista Lucas - sempre preciso em seus detalhes - esclarece que não havia lugar, porém só “para eles”. Isto indica que para todos os outros tinha um lugar qualquer para descansar, já que as camas na Palestina não eram senão uma esteira estendida no solo. Porém, para eles, que deviam observar as prescrições da Lei judaica referentes à impureza ritual, para eles não. Poderíamos acrescentar ainda: para eles, tão determinados a não incomodar, para eles, tão delicados e tão persuadidos do mistério que guardavam zelosamente; para eles não haveria lugar no meio do vaivém, do barulho e da mistura que reinava em toda a casa.
Concluímos, então, que foi em uma das grutas destinadas para estábulo da casa de família de José em Belém, o lugar onde aconteceu o nascimento do Messias. Concluímos que no grego de Lucas a palavra katályma significa o quarto (peça) separado de uma residência, e não uma hospedaria ou pousada, o que é confirmado pelo episódio da última ceia. Em Lucas 22.11, quando Jesus dá as instruções a Pedro e João para irem até uma casa da cidade e preparar a Páscoa, lhes indica: “E direis ao pai de família da casa: O mestre te diz: Onde está o aposento (katályma) em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?” Ou seja, Jesus não celebrou a última ceia em nenhuma hospedaria, mas sim em uma casa, cujo dono lhe preparou uma sala reservada, para ele e seus apóstolos.

Mais provas
E o confirma ainda a parábola do bom samaritano. Quando Lucas relata que aquele levou ao ferido até uma hospedaria, usa a palavra pandocei/on “pandokéion” para referir-se a ela, e não katályma. Se, portanto, quando Lucas usa a palavra katályma não pensa em uma pousada, mas sim em uma sala reservada de uma casa, é forçoso concluir que no relato de Maria e José, essa palavra devia ter tal significado. Finalmente, a tradição arqueológica compartilha deste mesmo parecer. Com efeito, na cidade de Belém ainda existe a gruta que durante séculos tem sido identificada por peregrinos como a do nascimento de Jesus. E todos os estudos arqueológicos que se realizaram em torno dela revelam que não se trata de uma gruta qualquer, perdida nas curvas de uma estrada palestina, mas sim que era incorporada a uma moradia como recinto estável. Em lugar daquela casa, hoje se tem construída uma majestosa basílica em comemoração a ela.

Um José como Deus manda
Algumas igrejas, quando chega o Natal costumam teatralizar o episódio do nascimento com cenários infantis nos quais Maria e José, depois de serem rejeitados (repelidos) em vários lugares, terminam amparando-se em um estábulo, onde pode então nascer o menino. Este quadro com a chegada em Belém à última hora e de noite, batendo desorientadamente à porta das casas e pousadas, e recebendo um não em todas as partes, pinta a figura de um pobre José inconsciente, negligente, e cuja incompetência quase causa um péssimo parto de sua esposa. Porém, na realidade trata-se de uma triste deformação. José de Nazaré foi um verdadeiro pai para Jesus e um autêntico esposo para Maria, e seu papel foi essencial no plano de Deus.

O ensinamento que deixou
Para nascer, Jesus Cristo tinha preparado sua habitação, seu teto, sua casa. Eram suas. Seu pai legal, José, as havia aprontado para quando ele viesse a este mundo. Porém, por razões circunstanciais, no momento de seu nascimento havia outros que necessitavam dela. Então José, com um gesto decidido, determinou deixar o lugar previsto e descer ao tosco estábulo. Dizem os psicólogos que as experiências pré-natais influenciam de modo determinante a vida das crianças. Seja como for, este evento mostra que desde o princípio a educação que receberia Jesus em sua casa haveria de marcá-lo para sempre. Jesus não nasceu pobre simplesmente por que as circunstâncias assim o exigiram, mas sim por uma opção livre de José. E quando cresceu decidiu abraçar perpetuamente a vida simples, à qual foi fiel até o fim. Viveu pobre, compartilhou o que tinha, andou rodeado dos mais necessitados, comeu do que lhe ofereciam, e morreu na mais absoluta simplicidade; jamais exigiu nada para si mesmo, pois não queria utilizar algo que a outros poderia fazer falta. Até o fim de sua vida foi sempre visto aplicando o princípio de que se alguém necessitava de sua habitação ele, voluntariamente, poderia baixar ao estábulo, afinal, seu pai José lhe havia ensinado.


La katályma - Signos de Vida: Quito, Equador, 2002.
Tradução: Valdenir Soares
Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Comentários e/ou observações: valdenirtre@gmail.com

segunda-feira, 25 de julho de 2016

O mundo político, social e religioso no contexto da Carta aos Romanos


O período do serviço apostólico de Paulo situa-se entre os anos 32 e 67 onde ocorreram os eventos comumente chamados de conversão - com o imediato início do anúncio da nova fé cristã -, e martírio, na cidade de Roma, após 25 anos de intenso trabalho missionário e não menos intenso e profícuo trabalho literário nos quais nos legou farta literatura, uma teologia solidamente construída e sistematizada, e um exemplo de vida e dedicação ao serviço e Reino de Deus como nunca se soube até os nossos dias e dificilmente se verá presente ou futuramente.
Durante esse tempo o Império Romano teve como seus governantes máximos quatro nomes sob os quais, com maior ou menor crueldade ou benevolência, estavam os destinos das inúmeras etnias conquistadas, que juntamente com gregos e romanos perfaziam milhões de pessoas espalhadas por vastas regiões territoriais. Esses territórios eram divididos em províncias que por sua vez eram postas sob a autoridade de governadores estabelecidos por Roma e que tinham por competência os assuntos militares, jurídicos e financeiros [1]. Inicialmente esses governantes eram chamados de prefeitos (do latim praefectus), ou éparchos em grego e, posteriormente, procurador (do latim procurator); ou epítropos - tutor, administrador no grego da época. Nas províncias os povos conquistados eram distribuídos em classes sociais de acordo com o seu poder financeiro ou quantidade de bens ou, ainda, seu grau de conhecimento e/ou influência junto a algum governador provincial, procurador ou mesmo ao próprio imperador.
Neste período temos, respectivamente e em ordem de ascensão, quatro imperadores:
Tibério (14-37) [2] – imperador enérgico e resoluto, bastante dedicado às províncias e eficiente em questões de ordem pública e segurança. Foi imperador por vinte e três anos e lembrado com certo exagero pelo escritor Fílon de Alexandria como aquele que em cujo governo “não deixou a menor faísca de guerra se acender” em seus domínios [3];
Ao contrário de Tibério, Gaio Calígula (37-41) seu sucessor [4] foi considerado, em termos de ordem e segurança, um dirigente fraco pois durante o seu governo houve em Alexandria (38) um tumulto violento entre os judeus residentes naquela cidade e a população periférica que pedia ao prefeito local, Ávilo Flaco, o seu rebaixamento a forasteiros sem direito de domicílio. Em outra ocasião ordenou que o Templo de Jerusalém fosse transformado em um santuário imperial onde seria erigida uma estátua sua, fato que não se consumou, pois Calígula foi assassinado em janeiro de 41 [5];
Cláudio (41-54) foi considerado um dirigente pacificador, extremamente humano e de muito bom senso principalmente em relação aos atos anteriores de Calígula contra os judeus [6]. Porém, desde o início de seu governo os advertiu de que a ordem e a convivência pacífica seriam critérios básicos para a manutenção de seus privilégios os quais começaram a enfraquecer ainda no primeiro ano desse imperador e foram, pouco a pouco, sendo diluídos culminando com a expulsão de muitos deles em 49 [7];
Nero, sucessor de Claudio, ao se tornar imperador (54-68) foi visto por muitos como alguém desinteressado na ordem e preservação do domínio imperial. Na verdade, não era Nero quem governava e sim seu mestre Sêneca e enquanto pôs em prática suas teorias, tanto a capital quanto o império estiveram tranquilos e prósperos [8]. Pouco depois começou a voltar-se para outros conselheiros e a adquirir excentrismos de tal modo que as suas manias foram comparadas - não sem temor, e particularmente pelos judeus - às de Calígula [9]. A partir de então as instabilidades começaram a gerar dificuldades na resolução de problemas que sobrevinham ao império já bastante desgastado tornando-o ainda mais desprestigiado aos olhos do Senado e de todo o povo.
Quando Paulo começou a empreender as primeiras perseguições aos chamados seguidores da nova seita do Caminho - por esse tempo, uma em meio a tantas outras expressões religiosas que então fervilhavam entre a mista população do vasto Império Romano -, Tibério estava no seu décimo nono ano de governo e vivia-se o ano 33 [10] do tempo que viria a ser denominado pelos próprios romanos Anno Domini.
Em 189 a.C., quando ainda era uma cidade-estado, Roma conquistou todo o mediterrâneo submetendo os povos a tributários, que desde então sustentavam o agora Império Romano. Com as rápidas transformações nas atividades produtivas e nas estruturas políticas e sociais a demanda econômica havia aumentado muito e intensificada a carga de tributos, de forma que tornavam os conquistados em massas espoliadas, de muitas formas empobrecidas e sem direitos, que se prestavam ao trabalho escravo [11].
Sob a conhecida Pax Romana o império se desenvolveu econômica e estruturalmente vindo a construir um notável sistema de transporte rodoviário e marítimo livre de ladrões e piratas por onde grande fluxo de capital era negociado. Apesar de a economia ainda ser essencialmente agrícola, os governadores romanos dedicaram maior atenção ao meio urbano especialmente agora que as cidades se tornavam cada vez mais complexas. Atraídos por essas facilidades e pelas imaginárias expectativas próprias que o meio por ora oferecia, Roma cresceu vertiginosamente devido à diversidade de segmentos que a procuravam.
Muitos desses segmentos conservavam, nas particulares formas de cultuarem suas divindades, lembranças de suas raízes pátrias que os unia em agremiações de certo modo distintas e estruturadas. A difícil condição desses grupos emigrantes e na maioria estrangeiros considerados residentes não-cidadãos não ficava alheia ao governo central, pois viviam sob tensão entre si e era necessária apenas uma pequena faísca para que uma situação adversa se instalasse.
Wayne Meeks nos informa que dentre esses segmentos étnicos alguns que se destacavam por influência e/ou quantidade buscavam até mesmo privilégios, mas pouco conseguiam visto que uma abertura poderia servir de prerrogativa para futuras reivindicações de outros. Dessa forma, tanto os residentes quanto os cidadãos gregos e romanos estavam sob o mesmo olhar, mesmas regras e disciplinas impostas pelo governo para que não houvesse inconvenientes entre eles. Meeks acrescenta que
Dois ou até três grupos organizados de residentes deviam existir lado a lado, ou então, os cidadãos gregos e romanos precisavam estar plenamente integrados entre si. Entre os residentes estrangeiros, que conviviam com os cidadãos romanos e com os cidadãos da própria cidade, um grupo ocupava posição especial. Os judeus normalmente se achavam organizados como comunidade distinta governada por suas leis e instituições próprias e com frequência reivindicavam, às vezes com sucesso, igualdade com os cidadãos romanos [12].
Na ocasião da Carta de Paulo aos Romanos, Nero estava no seu terceiro ano de governo e uma das questões que não se podia ignorar na administração imperial era a questão religiosa restaurada pelo primeiro imperador no ano 31 a.C. Os dois últimos séculos do antigo regime tinham sido marcados por guerras sangrentas e, com exceção do culto do lar, a religião havia caído em total descrédito sendo considerada como uma das principais causas da ruína e falência na Roma Antiga [13].
Com a morte de Marco Antonio e o fim do Segundo Triunvirato (e também da Antiga República), Caio Otávio se torna imperador e reivindica o nome de Augustus. Posteriormente restaura a paz chamada então de Pax Augusta e absorve também a antiga função religiosa de Sumo Pontífice (Pontifex Maximus) que cabia aos antigos sacerdotes. Ao perceber-se com tão grande poder César Augusto instituiu o culto de Roma e do imperador e restaurou o antigo politeísmo, desde que as divindades fossem admitidas pelo Estado, incentivando assim o retorno às práticas religiosas. Aos imperadores, a quem se devia lealdade ilimitada, logo foram atribuídas características de deuses e os seus cultos usados como meios de dominação ideológica e promoção pessoal.
Igualando a seus antecessores Nero seguia fielmente o modelo deixado. Porém, com exceção do exigido culto ao soberano, não interferia nas administrações locais; o Estado se contentava em não haver organizações ou associações de caráter subversivo dentro de seus limites. Quanto às comunidades, nenhuma delas com suas religiões distintas pretendia ir além de sua esfera limitada ou tornar-se particularmente perigosa para o Estado [14].
Entre os vários povos do império os judeus que haviam chegado ainda na Era Helênica já tinham se espalhado alcançando também Roma onde estabeleceram várias sinagogas. Por seus preceitos, eram fechados, exclusivistas, e ao contrário das outras religiões do império o seu culto não oferecia nenhuma atração fantasiosa sendo, por isso, e pelas exigências que apresentava, considerado ridículo e desprezível. Além disso, a sua ausência na cerimônia oficial devotada ao imperador era mal vista e tida como ato de deslealdade.
Contrariamente ao judaísmo, que apesar das desconfianças era respeitado por sua antiguidade, os cristãos eram mal vistos não apenas por se recusarem a prestar o culto ao imperador, mas como associações religiosas não-licenciadas (collegia illicita) que praticavam, segundo comentários, atos de canibalismo em função do não entendimento do sacramento cristão da ceia comunitária.
Nesse contexto de tantas dificuldades, injustiças e incertezas a mensagem cristã de amor desinteressado, a sua história de um Deus que se encarna tornando-se salvador, e a proclamação de uma firme esperança de vida após a morte foi se tornando conhecida não apenas por sua ética diferenciada e exigente, mas também como opção àqueles que buscavam algo mais do que o meramente ritual. Somado às interpretações do cumprimento da redenção anunciada por séculos de profecia hebraica, o anúncio do Evangelho rapidamente atraiu homens, mulheres e crianças, pobres e desprivilegiados, na esperança de que a promessa da segunda vinda de Cristo e o estabelecimento do seu Reino de justiça na terra se cumprisse em breve [15].

Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Comentários e/ou observações: valdenirtre@gmail.com

* Texto baseado nos tópicos 3.1 e 3.2 (Aspectos Sociopolíticos e Aspectos sociorreligioso). Parte da Análise Sócio-histórica de: SOARES, Valdenir. Uma fé viva e eficaz: propostas para a vida cristã a partir de Romanos 1.7-17. Trabalho de Conclusão de Curso. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2004.

Referências bibliográficas
[1] PAUL, André. O judaísmo tardio - história política. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 53.
[2] PAUL, op. cit., p. 55.
[3] MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo - biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000, p. 97.
[4] PAUL, op. cit., p. 55.
[5] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 28, 151/2.
[6] GOODMAN, Martin. A classe dirigente da Judéia - as origens da revolta judaica contra Roma 66-70 d.C. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 16.
[7] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 152.
[8] MONTANELLI, Indro. Historia de Roma. São Paulo: BRASA, 1961, p. 273.
[9] GOODMAN, op. cit., p. 27, 181.
[10] MURPHY-O’CONNOR, op. cit., p. 23.
[11] MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminho das civilizações - da Pré-História aos dias atuais. São Paulo: Atual, 1993, p. 73/4.
[12] MEEKS, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos - o mundo social do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 28.
[13] GIORDANI, Mário Curtis. História de Roma. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 61.
[14] BALSDON, J. P. V. D. (Org.). O mundo Romano. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 189.
[15] BALSDON, op. cit., p. 194/5.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Logoterapia - a busca pelo sentido da vida.



Devia ter amado mais, ter chorado mais,
Ter visto o sol nascer.
Devia ter arriscado mais e até errado mais,
Ter feito o que eu queria fazer.
Queria ter aceitado as pessoas como elas são;
Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração.

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído.
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos, trabalhado menos,
Ter visto o sol se pôr.
Devia ter me importado menos com problemas pequenos,
Ter morrido de amor.
Queria ter aceitado a vida como ela é;
A cada um cabe alegria e a tristeza que vier.

O acaso vai me proteger...


Epitáfio - Sérgio Britto (Titãs)
A melhor banda de todos os tempos da última semana, 2001.

O sentido da vida é um problema que envolve muitas particularidades da existência humana, e também uma indagação que esse ser, como ser finito, é constantemente requisitado a responder tanto a si mesmo como aos seus solidários existenciais, pois é o sentido que direciona e sedimenta os compromissos com o todo da vida à medida que dele se toma conhecimento tornando-se, também, evidente a importância que ele assume como força motriz, e gerador e gerenciador das esperanças e perspectivas que sustentam o existir.
Daí advém a ênfase dada por Frankl à necessidade que todo ser humano possui de descobrir, no mais íntimo do seu próprio ser, a resposta para essa pergunta de sentido, visto que por esse motivo ele próprio sobreviveu por três anos nos campos de concentração nazistas na Segunda Grande Guerra.
A letra da música exposta acima vem, em muitos sentidos, caracterizar essa busca - ou a incompreensão pelo que se busca. Se atentarmos um pouco mais perceberemos que isso se evidencia não apenas no poema musicalizado pelos Titãs, mas também nos epitáfios (pós-túmulo ou apenas satíricos) de inúmeras e conhecidas personalidades da nossa história sejam políticos, pensadores, artistas ou literários. Honestamente falando, creio que muitas de nossas próprias conjecturas e considerações sobre a vida e seu sentido não divergiriam muito se arriscássemos a escrevê-las.
Nesse breve ensaio estarei discorrendo sobre a Logoterapia - também chamada de Terceira Escola Vienense de Psicoterapia - na visão existencial humanista de seu criador o Dr. Viktor Emil Frankl. Para isso, farei inicialmente uma breve e sucinta apresentação acompanhada de seu histórico de vida e do início de seu trabalho.
Em seguida tratarei resumidamente da Logoterapia nos seus conceitos e atribuições fundamentais onde espero não empobrecer demasiadamente o seu conteúdo naquilo que tem de mais precioso que é a busca do sentido último da vida.

1 Sobre Viktor Emil Frankl
Na ocasião em que esteve no Brasil em 1984, Frankl era professor de Neurologia e Psiquiatria na Universidade de Viena e também professor de Logoterapia na Universidade Internacional da Califórnia. Lecionou ainda nas Universidades de Harvard, Stanford, Dallas e Pittsburgh. Os cerca de trinta livros de autoria de Frankl já foram traduzidos para mais de vinte línguas, incluindo o chinês e o japonês. Viagens de conferências, para as quais recebeu convite de quase duzentas universidades, levaram Frankl a inúmeros países de todos os continentes. É o fundador da Logoterapia ou, como diversos autores a denominam, Terceira Escola Vienense de Psicoterapia [1].
Frankl nasceu em 26 de março de 1905 em Viena - Áustria, berço cultural e artístico da Europa e considerada a mãe da psicologia visto que aí também nasceram Sigmund Freud e Alfred Adler contemporâneos seus e criadores da Psicanálise e Psicologia Individual também chamadas, respectivamente, de Primeira e Segunda Escola Vienense de Psicoterapia.
Filho de pais judeus que gozavam de relativo prestígio na sociedade vienense, Frankl desde pequeno começou a se interessar pelos trabalhos de Freud. Aos dezesseis anos, convicto de que seguiria o mesmo caminho enviou-lhe sua primeira carta, o que lhe rendeu, logo em seguida, o prazer de conhecê-lo pessoalmente. Freud respondia as cartas que o jovem Viktor lhe enviava, encorajando-o a continuar os estudos de Psicologia e até publicou na Revista Internacional de Psicanálise, a qual dirigia, um artigo que Frankl escreveu aos dezenove anos sobre a Mímica da afirmação e da negação. Assim ingressava definitivamente no campo da Psicologia aquele que pouco mais tarde romperia com o pensamento freudiano por considerá-lo determinista, uma vez que subtraía ao ser humano a capacidade para mudar seu destino. Viktor Frankl conclui que Freud não vê a pessoa como livre e modificadora de sua própria vida, e sim como um ser determinado, guiado basicamente por impulsos (sexuais ou não) e pela procura da satisfação do princípio do prazer [2].
A partir de um pensamento autônomo que buscava no sentida da vida a humanização da Psicologia, Frankl aproxima-se então de Alfred Adler, ex-discípulo de Freud e criador da Psicologia Individual. Nessa teoria Frankl buscava similaridades, pois lhe parecia oferecer elementos para a compreensão humana; ainda por esse tempo publicou vários artigos contestando a vigente visão mecanicista de homem.
Em 1926, Frankl apresenta à Associação Internacional de Psicologia Individual suas ideias sobre o sentido da vida. Nesse mesmo ano falou em outro congresso sobre “A neurose como expressão do meio”. Em ambas as palestras divergiu consideravelmente das propostas da Psicologia Individual, foi veementemente rechaçado, e suas relações com Adler começaram a ficar problemáticas e enfraquecidas, mas perduraram ainda até 1929. Na verdade, a problemática com a teoria de Adler é que mesmo tendo escrito um livro intitulado “O sentido da vida”, ele buscava defender que o ser humano estava no mundo em busca do poder e da conquista da superioridade, teoria que chocou frontalmente com a concepção de homem de Frankl [3].
Em 1927, ainda sob a bandeira da Psicologia Individual, mas com seu pensamento e métodos próprios e em vias de sistematização, fundou e dirigiu a revista Der Mensch im Alltag e criou vários centros de ajuda psicológica a jovens carentes da periferia de Viena. A partir desse trabalho num período de quatro anos conseguiu reduzir o número alarmante de suicídios a praticamente zero. Com o sucesso do trabalho amplamente divulgado nos jornais vienenses, vários outros centros foram abertos em outras cidades e países como Berlim, Frankfurt, Chemnitz, Zurique, Dresde, Brunn, Teplitz-Schonau, Praga, Budapeste, Iugoslávia e Lituânia. Frankl ganhou o reconhecimento e a adesão de inúmeros colegas, ex-colegas e até mesmo de discípulos de Adler que passaram a dedicar horas para o atendimento gratuito em seus consultórios e nas escolas. Quando se formou em medicina (1930) já havia rompido completamente com a escola adleriana e no período de 1931 a 1940 encerrou as publicações de sua revista e passou a dedicar-se à Universidade de Viena, onde se especializou em Neurologia e Psiquiatria. Dirigiu ainda o departamento de neurologia do Rothschildspital, tratando exclusivamente de pacientes de origem judaica.
Nessa época tem início a II Guerra Mundial e os judeus começam a ser capturados e mortos. Um plano de fuga para toda a família era inviável e, assim, pouco a pouco foram se separando. Sua irmã fugiu para a Austrália, seu irmão e cunhada foram capturados e enviados ao campo de Auschwitz onde morreram. Frankl, juntamente com seus pais e sua esposa decidiram não fugir e foram presos em 1942 e enviados a lugares diferentes.
No momento da separação uma promessa de reencontro entre Viktor e Tilly Frankl fez com que durante o período em que esteve preso lutasse com todas as forças para continuar vivo; alguém o esperava. Como o prisioneiro nº 119.104, Frankl esteve em vários campos de concentração, inclusive o de Auschwitz. Nos três anos em que presenciou o holocausto, sofreu as mais degradantes situações e contrariedades que um ser humano poderia suportar. Aí também presenciou as SS destruírem o seu primeiro manuscrito sobre Logoterapia. Em todo o sofrimento que suportou nesse período jamais lhe ocorreu a ideia de suicídio. Ao contrário, dedicou seu tempo cuidando do equilíbrio mental de seus companheiros de martírio, esperando o momento de escrever seus livros e de se encontrar com Tilly. No dedicado trabalho voluntário amadureceu a sua tese da Logoterapia da qual dispôs nos campos de concentração como
Uma modalidade de tratamento que buscava resgatar, da intimidade da alma dos prisioneiros, o sentido da vida, o interesse por alguma tarefa interrompida à espera de realização após o fim do martírio, ainda que fosse simplesmente procurar encontrar familiares em alguma parte do mundo [4].
Quando, finalmente, foi libertado em abril de 1945, aos quarenta anos, estava cansado e enfraquecido pelo longo tormento que sofrera e não tinha notícias de nenhum parente vivo. Logo tomou conhecimento da morte dos seus pais, irmãos e amigos. Nas folgas do seu trabalho no Hospital Policlínico de Viena, escreveu o seu primeiro livro, Cura médica das almas. Com o pensamento voltado a Tilly, ocupava-se em passar longas horas procurando o seu nome nas listas de mortos sem, contudo, obter nenhum êxito. Finalmente em abril de 1984 quando Frankl esteve no Brasil, curiosamente onde menos se esperava, ele tomaria conhecimento do que há muito o intrigava.
No dia 27 de abril de 1984, Frankl veio ao Brasil para participar do 1º Encontro Latino-Americano Humanístico Existencial realizado em Porto Alegre. Era a primeira vez que Frankl teria notícias concretas e definitivas sobre Tilly, depois de trinta e nove anos. Tudo foi tão surpreendente que poucos não choraram com a peça que a vida lhe estava pregando. No aeroporto de Porto Alegre, Frankl foi recebido pelo ex-sogro e sua ex-cunhada irmã de Tilly, Ella Mayer, que acompanhou os últimos instantes de agonia daquela que Frankl amou [...]. Frankl não sabia que eles tinham se refugiado no Brasil, fugindo do pesadelo da guerra [5].
Nessa ocasião foi plantada no Brasil a semente da Logoterapia. Frankl apresentou-se como “um simples companheiro existencial, cuja vida contei aqui para que seja possível a compreensão de sua obra psicológica que se confunde com a vida e sofrimento” [6].

2 O que é a Logoterapia
Frankl faz questão de frisar que a Logoterapia não é nenhuma panaceia [7], ou seja, da mesma forma que na psicoterapia em geral, nem todos os métodos podem ser aplicados em todos os casos e com as mesmas possibilidades de sucesso, nem tampouco todos os terapeutas podem usar todos os métodos com o mesmo sucesso [8].
A Logoterapia é a psicoterapia existencial e, como tal, não tem a intenção de substituir nenhuma das grandes propostas da Psicologia moderna. Ela não é, conforme citado, uma solução definitiva para o dilema da humanidade, pois surge como alternativa clínica, numa tentativa de ajudar a encontrar o sentido da vida para cada pessoa na sua realidade, em seu sofrimento, em sua existência muitas vezes desprovida de propósito [9].
Considerada a Terceira Escola Vienense de Psicoterapia, a Logoterapia é a corrente da psicoterapia centrada no sentido da vida; ela se ocupa com a vontade de sentido, o sentido último. Nesse ponto fica a pergunta: o que devemos entender por sentido? “Dentro da Logoterapia, o sentido não significa algo abstrato. Ao contrário, é um sentido totalmente concreto. De fato, é ‘o sentido’ concreto de uma situação com a qual uma pessoa também concreta se vê confrontada” [10]. Diante de situações como a liberdade, a morte, o isolamento e consequente falta de um sentido para a vida, o indivíduo se depara com sua fragilidade e nasce um conflito existencial. Frankl concluiu que a reação e a resposta nessas situações estão no interior de cada pessoa como uma vocação, um apelo, e que o papel das psicologias (o que veremos no próximo tópico) é ajudá-las a encontrar, em si mesmas, esse “para quê” de sua existência [11].

2.1 A tarefa da Logoterapia
Toda situação na vida tem um sentido. Essa afirmação a princípio nos parece um tanto fechada e determinista. Entretanto, é exatamente essa a proposta da Logoterapia frente ao ser humano: ajudá-lo nas suas crises existenciais, não a inventar ou criar um sentido para a vida, mas descobrir, na sua situação concreta, “o sentido”, pois este já existe na responsabilidade para com uma tarefa ou trabalho a ser executado e que brota do exercício consciente da liberdade que temos [12].
A Logoterapia é uma ciência que acredita que o ser humano, por ser consciente e livre, é incondicionado. Dessa forma, a sua tarefa é ajudá-lo a se conscientizar de que a liberdade é o seu destino dentro do curto espaço de tempo que a vida lhe oferece,
pois não é possível repetir o passado; o que se repetem são imagens e fatos, mas a experiência é irrepetível como também o sentimento, a oportunidade e o tempo. [...] Com essa fragilidade consciente, descobrimos que a vida, por não ser eterna, cobra atitudes responsáveis [...] [pois], se tivéssemos todo o tempo do mundo e se nossa vida não tivesse limites, talvez adiássemos para sempre nossas responsabilidades, ou melhor, talvez não houvesse a necessidade de ser responsável. O que falar dos nossos compromissos? O que pensar de nossa criatividade presente na iminência de perigosas situações? [13]
Essa, podemos dizer, urgência em assumir a responsabilidade e buscar o sentido último em determinada situação ficou bastante evidente, segundo Frankl, no período em que esteve em situações-limite trabalhando entre os prisioneiros nos campos de concentração nazistas. Ele nos relata que o prisioneiro que perdia a perspectiva de futuro
...estava condenado a definhar, confirmando a estreita relação existente entre o ânimo de uma pessoa, seu valor e suas esperanças. De forma instintiva, sua sobrevivência e a de seus companheiros que resistiram devia-se, portanto, ao sentido que lhes dava capacidade de transcender àquelas grades, através do sofrimento, numa atitude intencional e livremente aceita, rumo a um valor mais alto. Frankl encontrou sentido para realizar-se naquela espécie de vida subumana e percebeu que todo aquele que também o encontrava adquiria forças para sobreviver ao infortúnio. Assim a resposta ao sentido da vida é mobilizadora de forças vitais. Ou, ao contrário, o vazio - ou o vazio existencial - é capaz de causar enfermidade [14].
Percebemos então que é impossível receitar o sentido, mas podemos descrever o que ocorre numa pessoa que esteja à procura de sentido. Encontrar o sentido então seria o mesmo que perceber uma Gestalt - no sentido das teorias de Wertheimer e Lewin que, por hora, fogem ao escopo desse trabalho, mas tratam com um caráter de exigência que seria inerente a situações específicas. No caso desse sentido gestáltico, porém, “não se trata de uma ‘figura’ que se destaca do seu ‘fundo’, mas o que nós percebemos sempre ao encontrarmos um sentido é - no fundo da realidade - uma possibilidade: a possibilidade de modificar a realidade, desta ou daquela forma” [15].
Os aspectos aparentemente negativos da existência humana também podem ser transformados em algo positivo, num mérito, quando enfrentados com atitude e postura corretas. Em seu autoconceito originário o homem comum sabe que a vida o coloca em determinadas situações que exigem um enfrentamento de uma forma ou de outra; a compreensão originária que ele tem de si mesmo lhe incita a descobrir esse sentido. A fenomenologia traduz essa autocompreensão apenas para a linguagem científica. A Logoterapia, por sua vez, traz ao nível do conhecimento da pessoa comum, o conhecimento, referente às possibilidades de encontrar um sentido na vida, capacitando-a a encontrar esse sentido [16].

2.2 Logoterapia e religiosidade
A abordagem existencial de Viktor Frankl veio fazer frente ao pensamento da psicanálise que interpreta o ser humano, a priori, como ser dirigido ou impulsionado. Frankl até entende a posição freudiana considerando a época histórica em que surgiu bem como o seu tom reacionário e tipicamente de resposta ao contexto social impregnado de puritanismo ao qual Freud não somente reagiu, mas também agiu a partir dele. Essa posição de Freud legou à psicanálise duas características básicas: o atomismo psicológico e a teoria da energia psíquica as quais reduz o homem, em última análise, a um aparelho psíquico autômato. Precisamente nesse ponto Frankl coloca um outro conceito de ser humano, priorizando a “autonomia da existência espiritual” [17].
A análise existencial atribui a esse ser um senso de responsabilidade, pois interpreta a sua existência, em sua essência mais profunda, como ser responsável, apto para um dever, para uma missão; apto a dar resposta quando interrogado sobre o sentido da vida, visto que não é o ser que interroga a vida, mas ela, em suas situações, é que o interroga. Dessa forma “a existência só poderá ser ‘nossa’ se for responsável” [18]. Esse ser autônomo e responsável é que confere transcendência à existência humana.
Onde quer que transcenda a si mesmo, o homem se eleva sobre seu ser psicofísico, deixa o plano do somático e do psíquico e entra no espaço do humano propriamente dito, o qual é constituído por uma nova dimensão, a dimensão noética, a dimensão do espiritual, pois nem o somático nem o psíquico isolados constituem o que há de propriamente humano. Antes, ambos representam apenas facetas da existência humana [...][19].
Se, para Freud, o ser humano é um simples inconsciente instintivo, para Frankl ele é bem mais que isso, um inconsciente espiritual. Enquanto que para Jung Deus é uma imagem sem maior significância, para Frankl Deus é uma realidade viva, existente e conhecida pela espécie humana ainda que a ciência positiva não o prove. Frankl defende ainda, em contraposição a Freud, que o homem tem uma espiritualidade que foi reprimida e recalcada pela opressão, muito mais que uma sexualidade reprimida.
Esse aspecto do ser humano - como inconsciente espiritual - em relação ao divino é comparado a uma pessoa tentando encontrar um objeto que perdeu na grama. Essa pessoa apalpa, observa atentamente, afasta as folhas com cuidado e procura... Entretanto, o que torna possível à pessoa encontrar o objeto é o fato de ela já conhecer a sua cor, forma e tamanho. No magnífico livro das Confissões, Santo Agostinho apresenta bem esse princípio em um de seus escritos mais belos, poéticos e inspiradores. O texto diz: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! [...] Estavas comigo, mas eu não estava contigo. [...] Eu te experimentei, e agora tenho fome e sede de ti” [20].
Penso que Santo Agostinho entendeu e expressou de forma fantástica a consciência que o ser humano tem de sua condição sobre-humana. Dimensão na qual se apoia a fé básica no sentido último da vida. O fato de se ver como um ser no mundo mas com lastros além, no infinito, é o que faz de muitos pessoas cheias de esperança e fé na vida. Se o ser humano busca a Deus é porque já o conhece seja pelas obras da criação, seja pelo fato de sua fragilidade ante as situações de sua existência, seja por arquétipos, etc. O que realmente interessa é que parece haver uma necessidade primordial em se acreditar [21].
A Logoterapia leva em conta e valoriza grandemente essa dimensão espiritual humana, pois é uma psicoterapia que parte do espiritual, da esperança como força motriz que anima a existência humana. Ela não é uma seita, nem uma teologia, nem tampouco uma filosofia, mas sim uma forma de psicoterapia existencial que acredita na existência de um Tu-eterno, um Deus que, ainda que ignorado, está aninhado na intimidade de cada um [22]. Em se tratando disso ele acrescenta que, quanto à forma e linguagem que cada pessoa, individualmente, encontra para se dirigir a Deus, poderíamos chamar de prece, especialmente na sua forma de diálogo. Porém, precisamos levar em consideração que esse dirigir-se a Deus ultrapassa o sentido de uma fala puramente interpessoal; ela se torna também intrapessoal. De acordo com Frankl, nesse sentido
Deus é o parceiro dos nossos mais íntimos diálogos conosco mesmos. [...] Sempre que estivermos totalmente a sós [...] na derradeira solidão e honestidade, é legítimo denominar o parceiro destes solilóquios de Deus, independentemente de nos considerarmos ateístas ou crentes em Deus [23].

2.3 As técnicas da Logoterapia
A Logoterapia, como forma de análise existencial humanística, elaborou algumas técnicas clinicas para atuação prática. Até o presente momento e desenvolvimento da Logoterapia, essas técnicas são cinco: intenção paradoxal, derreflexão, apelação, diálogo socrático e denominador comum.
Por motivo de tempo e espaço, faremos apenas uma breve apresentação de cada uma delas o que, infelizmente, empobrece absurdamente o seu entendimento.
a) Intenção paradoxal - consiste em prescrever ao cliente o sofrimento que ele já possui. Com ela o terapeuta propõe ao cliente manter o sintoma que está incomodando como estratégia para se conseguir o contrário;
b) Derreflexão - pode ser definida como uma tentativa de deslocar a atenção do cliente que está preocupado com sua “doença” para alguma outra coisa mais importante e mais significativa de sua vida, que esteja no futuro;
c) Apelação - é precisamente o recurso técnico que permite o reavivamento da riqueza sentimental e afetiva da criatura em estado de perturbação e consiste em “denunciar ao cliente a manifestação de sua capacidade de sentir a sua humanidade escondida e carente de um resgate”;
d) Diálogo socrático - é a discussão sobre o autoconhecimento que permite ao cliente entrar em contato com o seu inconsciente noético, seu potencial humano e a direção que ele pretende dar à própria existência;
e) Denominador comum - é a técnica que, em situações-limite (separação conjugal, aborto, mudanças) trabalha com a capacidade do cliente em tomar decisões, avaliando minuciosamente sobre as perdas e ganhos, se for tomado este ou aquele caminho [24].

2.4 O conceito de liberdade na Logoterapia
O termo liberdade na abordagem de Frankl tem, talvez, maior importância e se torna até mais usado do que Logoterapia visto que a crença na liberdade é o pilar principal dessa psicoterapia. A Logoterapia nega veementemente que o ser humano seja condicionável, impulsionado por impulsos sexuais, e/ou arrastado pelo desejo de encontrar o prazer. Pelo contrário, ela enfatiza que, no sentido mais extremo que se possa compreender, cada indivíduo tem em si uma vocação para a liberdade onde ele busca encontrar o sentido de sua vida e construir a sua história, pois a consciência de sua responsabilidade o inspira a agir dessa forma.
Entretanto, o processo de libertação esbarra nos limites próprios de um ser que sabe que a responsabilidade é o pressuposto máximo para se ser livre verdadeiramente. Ela é de tal modo indispensável ao indivíduo que é quase impossível não ser responsável, uma vez que o máximo da vida é tomar decisões e assumir responsabilidades. Até mesmo a omissão é uma tomada de decisão com consequente responsabilidade. Desta forma, na ótica da Logoterapia, a liberdade não é definida de fora para dentro, mas aparece como vocação pessoal do ser humano e consiste na capacidade de dar respostas à vida e de assumir aquilo que se faz [25].
Além da responsabilidade, outro desdobramento fundamental da liberdade é a consciência. Frankl herdou de Adler a crença de que todas as pessoas são conscientes e de que tem controle sobre tudo o que fazem; são conscientes até mesmo da sua dimensão inconsciente. A consciência permanece mesmo durante o sono; até mesmo nos estados de coma ali está um raio, um lampejo de consciência. Se, assim, temos consciência de que podemos cometer enganos, é possível então redobrar o uso hábil de nossa responsabilidade. Assim, liberdade, responsabilidade e consciência extrapolam a mera conceituação filosófica, pois só podem ser compreendidas como manifestações do ser humano no mundo. “No uso da consciência a pessoa se humaniza e passa a dar expressão à sua liberdade pessoal, a tomar atitudes e a assumir uma posição de responsabilidade frente à vida e ao seu sentido. [...] São atribuições próprias da dimensão espiritual humana que, de forma nenhuma, podem ser maculadas” [26].

Considerações finais
Ao fim desse breve texto é importante considerar não apenas a pertinência da proposta libertadora da Logoterapia, mas sua necessidade por valorizar a pessoa como ser autônomo. Aliás, ela nasce das convicções próprias de alguém que não se viu - diria - determinado a nadar nas correntes que definiam o pensamento vigente, mas de alguém que mediante estudos e sistematizações propôs alternativas que se mostraram plenamente eficazes quando, assim, foram requeridas.
Dentro de um contexto altamente pragmático e mecanicista - que vivia ainda os auspícios do progresso técnico e científico como fins últimos da emancipação e redenção do ser humano -, Frankl se volta para o todo da constituição humana (corpo-alma-espírito), para a liberdade e existência responsáveis fundamentada em um “eu” transcendente, autônomo e espiritual. Olhando para além do meramente psicossomático, ainda em seus primeiros passos a Logoterapia já foi capaz de oferecer sustentação apontando caminhos e possibilidades para muitos em uma sociedade diminuída e despersonalizada por incertezas e circunstâncias adversas, e mesmo mutilada pelas teorias freudianas, marcadamente reacionárias ao ambiente em que foram gestadas.
Dessa forma, do ponto de vista de sua eficiência a Logoterapia tem muito a oferecer, pois vivemos hoje numa sociedade carregada de influências próprias de estilos de vida hipermodernos, na qual os dias são marcados por incertezas, relativismos, individualismo, medo, solidão etc., e as pessoas determinadas por clichês e trivialidades que as levam aos limites da desconstrução da essência humana, um verdadeiro caos existencial onde consequências extremamente danosas têm sido verificadas.
É nesse ambiente que vislumbro a proposta e a tarefa da Logoterapia, a partir daqueles que, como Frankl, possam colocar esse conhecimento a serviço de seus companheiros e companheiras existenciais, daqueles que necessitam de uma fagulha de fé e de esclarecimento acerca do sentido da vida. E que, ao final, independente do lado que estivermos, a tônica do nosso epitáfio não seja apenas “Devia ter...”.

Obs.: Para um melhor entendimento sobre a Logoterapia e os escritos de Viktor Frankl, dois trabalhos são essenciais.
FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido - um psicólogo no campo de concentração. Porto Alegre/São Leopoldo: Sulina e Sinodal, 1987.
FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus. 4ª ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal e Vozes, 1997.

Valdenir Soares - Teólogo e Professor
Comentários e/ou observações: valdenirtre@gmail.com

Baseado em: Logoterapia - a busca pelo sentido da vida. Trabalho apresentado como requisito parcial para aprovação na Disciplina de Introdução à Psicologia. Seminário Teológico de Fortaleza (IPIB). Fortaleza, Ceará, 2003.

Referências Bibliográficas
[1] FRANKL, Viktor E. A presença ignorada de Deus. 4ª ed. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal e Vozes, 1997, 101 páginas (dados da contracapa).
[2] GOMES, José C. Vitor. Logoterapia - a psicoterapia existencial humanista de Viktor Emil Frankl. São Paulo: Loyola, 1992, p. 15/6.
[3] GOMES, op. cit., p. 11.
[4] GOMES, op. cit., p. 18, 20, 21.
[5] GOMES, op. cit., p. 23.
[6] GOMES, op. cit., p. 24.
[7] Do grego panákeia; pelo latim panacea - Remédio para todos os males.
[8] FRANKL, Viktor E. A psicoterapia na prática - uma introdução casuística para médicos. São Paulo: EPU, 1976, p. 1.
[9] GOMES, op. cit., p. 27.
[10] FRANKL, A presença ignorada de Deus, op. cit., p. 79.
[11] GOMES, op. cit., p. 28.
[12] Idem.
[13 GOMES, op. cit., p. 29.
[14] ANGERAMI–CAMON, Valdemar Augusto. Psicoterapia existencial. 3ª ed. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 23.
[15] FRANKL, A psicoterapia na prática, op. cit., p. 11/2.
[16] FRANKL, A presença ignorada de Deus, op. cit., p. 72.
[17] FRANKL, A presença ignorada de Deus, op. cit., p. 14/5.
[18] FRANKL, A presença ignorada de Deus, op. cit., p. 16.
[19] FRANKL, A psicoterapia na prática, op. cit., p. 44.
[20] AGOSTINHO, Santo. Confissões. 14ª ed. São Paulo: Paulus, 2001, p. 295.
[21] GOMES, op. cit., p. 55.
[22] GOMES, op. cit., p. 56.
[23] FRANKL, A presença ignorada de Deus, op. cit., p. 87.
[24] GOMES, op. cit., p. 57-68.
[25] GOMES, op. cit., p. 47.
[26] GOMES, op. cit., p. 48.